terça-feira, 20 de agosto de 2019

Notas sobre a luta de classes no Brasil




Há pouca possibilidade de compreensão da atual situação da luta de classes no Brasil caso não se leve em conta o período anterior, que remete aos inícios do novo milênio e aos governos, aos acordões – públicos ou velados –, às “conciliações” – que só se deram no plano da aparência – e etc., que vigeram de lá para cá. E há pouca possibilidade, pois, a luta de classes não é um fato, mas um processo, intricado, de difícil compreensão empírica, movente.
Em torno de diversas dificuldades de fixação do conceito, em sobrevoo pode-se ver uma linha que conduz, opaca mas manifesta, a história recente. Os governos do PT – Lula, especialmente – levaram a capacidade “democrática” brasileira (entre aspas, pois se trata de uma forma mal acabada e bastante peculiar e “defeituosa”) ao extremo. Os governos pós-Golpe (em maiúscula, pois não foi qualquer golpe de Estado) acirraram – pela via econômica, dos costumes, da falsa polêmica que toma de assalto o lugar de verdade e etc. – a tensão entre as classes. Trata-se de um período de extremo, de transição. Não está claro o que há por vir – o futuro é turvo como o céu de Rondônia neste agosto malfadado.
A “conciliação de classes”, dita aos quatro ventos de boca cheia por Lula, não passou de um verniz em madeira bichada. Tudo se deu sobre – ou sob, tanto faz neste caso – escombros não removidos, e ainda incandescentes, do passado mais recente que, via de regra brasileira, era o revolvido do passado mais longínquo, remetendo à “Independência”. Foi o consenso democrático sem rupturas com a última ditadura militar, com uma “abertura democrática” ocorrendo sem resolver o passado, sem o trazer ao nível da consciência e sem o reelaborar praticamente. Não se resolveu o passado assombroso, e não se tinha campo para tanto – aliás, é regra: a escravidão, seu Espírito, como um fantasma potente, absorve a existência dos vivos, até o mais profundo da vida social, da psique, das relações mais íntimas. Conciliação com um passado que não passa; acordo mefistofélico. Se a burguesia brasileira abriu mão de sua soberania, sucumbindo conscientemente ao Império do Capital e, ali, engendrando e dando vazão à forma violenta do Golpe de Estado de 1964, ela, consciente ou não, “abriu mão” do executivo do Estado para que se alavancasse sua ascensão. “Nunca banqueiros ganharam tanto quanto em meu governo”, disse o velho sindicalista, agora ex-presidente. Integração por cima, via consumo, e inserção dos sem-nome de forma anticidadã, à reboque tanto do crescimento vertiginoso da extração de mais-valor pela exploração diversificada do trabalho abstrato, quanto por uma espécie de “imperialismo” na América Latina e no Atlântico Sul.
O Espírito do século XIX, aparentemente inócuo para olhos desavisados, e aquele que deu o tom da sociabilidade no período ditatorial, continuaram a assombrar. Qualquer possibilidade de mudança efetiva esbarraria, mais dia menos dia, nos limites de uma conciliação do inconciliável por definição: levou-se ao extremo tanto a “paciência” da burguesia, que viu mais claramente os limites do “desenvolvimento” – ainda que de forma avessa, enviesada –, quanto aquilo que se estabeleceu com a “abertura democrática”. O futuro esbarrava no passado. Na visão deles, somente seria possível por uma reelaboração do que havia sido. Vejam só! Os reacionários se tornaram os verdadeiros reformistas. Trazem o passado à tona para avançar por seus meandros, reinventando formas de poder e de dominação de classes, culminando num progresso – abstratamente controlado, “do jeito que dá”, no jeitinho, na pancada, na destruição da natureza em todas suas dimensões e numa gambiarra social – das formas do capital. Alguns dizem “desumano”, como se fosse possível qualquer humanidade não-reificada no e pelo capital.
Se Lula levou a um limite as possibilidades de desenvolvimento (capitalista e tipicamente brasileiro, ainda que o mundo esteja passando pela mesma reorganização)[1], levou ao limite, igualmente, as possibilidades de certa sociabilidade – tendo em vista a forma com que se impôs. Agora, porém e por conseguinte, se trata da explosão dos limites e suas reconfigurações: último obstáculo ultrapassado, luta de classes sem véus e sem mediações escamoteadoras. Luta de classes como dominação crua, nua e impiedosa (como se tivesse sido piedosa alguma vez), sem meandros, na qual estamos perdendo, sendo esmagados – não para sumir, mas para sucumbir.
Há uma mudança em curso. Suas linhas mais visíveis estão no campo do discurso e dos costumes e da exploração do trabalho e dominação social de uma classe sobre as demais via reformas econômicas – que, diga-se, tiveram seu caminho pavimentado durante os anos dourados, na qual não se fez nenhuma reforma profunda, e arrematado com o governo do Golpe (Temer).
Tal imbróglio histórico atual é resultado de um processo. Como resultado, é também uma das cabeceiras de reinício, de continuidade-ruptura com o passado. Não haverá repetição ipsis litteris do passado, nem no governo vigente – ou seja lá o que for essa merda –, nem na brisa utópica daqueles que sonham com o passado “paradisíaco” de 2002-2010, até porque condições objetivas e subjetivas, as formas da totalidade, já não são as mesmas e, ainda que pareça, nunca se repetem – ao menos para aqueles que fizeram mal leitura, e somente da primeira página, do 18 Brumário: tudo que Lula conseguiria fazer agora seria comédia piorada, paródia sem graça – para não dizer o que faria o professor do Insper...
Estamos mais para O Alienista: uma revolução que nada muda, tudo permanecendo como está, diferente ainda que igual. No fundo, aquilo que anima este processo é mais que volúvel: como Brás Cubas ou Conselheiro Aires, é volúvel na medida em que seu chão firme, sua fixidez, se faz por um movimento de oscilação pendular, que vai e vem sem sair do lugar, ainda que avançando, e sucede por mudança na qual seu êxtase legitime sua estase.


Subsolo! 




[1] Apesar de que não era o único limite existente; como forma, o limite se estabeleceu concretamente pelo processo, não antes; se a forma de comando do Estado e da sociedade fosse outra, outros seriam os limites, talvez mais amplos, talvez mais restritos, talvez não tão visíveis...

quinta-feira, 24 de maio de 2018

Apontamentos #2


     
De um ponto de vista dialético – se é que se pode chamar a dialética de ponto de vista –, a afirmação irrestrita da realidade efetiva é afirmação da ideologia efetiva. Por um lado, há aqueles que, ingenuamente ou por má fé e mau caráter, anulam os aspectos “negativos” (do ponto de vista deles) para afirmarem os “positivos” (idem), colocando a contradição em suspenso (senão a anulando). Por outro, há os que concorrem com aberrações o posto de alto comando do lunatismo: também totalizam um aspecto parcial para fazer valer sua visão desvairada do “mundo” (um mundo à parte, de fazer inveja ao desenho animado Bob ou a qualquer Stultifera Navis). Excluindo estes, vejamos até que ponto vai o outro.
O novo lumpemproletariado acha que pode, a partir de si e somente de si engendrar uma visão crítica da realidade. Rejeita toda e qualquer autoridade – que seja alteridade em relação a ele – como se, por si só, autoridade fosse autoritária; renuncia à experiência da adversidade (se é que ainda é possível) e ao debate crítico profícuo e profundo na medida em que, de um lado, não satisfaz o ego individual e, de outro, é (pros)elitismo. Só se aceita, por conseguinte, o que vem de dentro, o que já está dentro, o que já está dado – e dado por si próprio: na era da “pós-verdade” (sic!), só aceita a autoverdade. A questão, aqui, é que esta – a autoverdade – não é monadológica, niilista ou algo do tipo: é universal e universalizada. Sua visão crítica se dá a partir de suas vivências. Esquece-se, é claro, toda contradição implicada na ideia de “vivência”: autossuficientes, sem necessidade de distanciamento e de crítica que vá para além do que já têm como “crítico”, esquecem-se as mediações da tal vivência. Vivência de quê e como, a partir de quais lentes se olha e se filtra a realidade – lentes produzidas onde e por quem? A diferenciação subjetiva (ainda há subjetividade?), a vida supostamente autoalimentada (apenas por si mesma), vida independente tanto de outros quanto de condicionamentos – salvo pelos condicionamentos escolhidos pelos próprios autossuficientes e, também, pelo grupo ao qual se identificam sem prévio aviso, anulando todas as diferenças que poderiam elevar as contradições à dignidade de seu posto real – esquece-se, sumariamente, que depende de uma totalidade que permita e que dê condições para que haja individuação. Só há diferenciação subjetiva sob uma objetividade específica.
Nenhuma realidade se dá à vivência, ou à semiexperiência, sem filtros. Isto não quer dizer que sejam “fenômenos”, aquilo que aparece vindo de uma “coisa-em-si” oculta e inalcançável. Trata-se de não esquecer as mediações, abstratamente concretas, que condicionam e determinam a vivência e mesmo a experiência (se é que ainda é possível falar disto!).
Anulam, então, as contradições de si mesmos e de suas produções (formação? Semiformação?). Invalidam, num golpe mais fatal que de Kill Bill, toda e qualquer mediação que não seja autocontrolada, isto é, própria (se é que há autonomia para tanto).
Ora, quando a totalidade – complexa por si só, extremamente difícil de ser percebida por sua complexidade e por sua produção como unidade e singularidade aparente (na qual a própria totalidade se anula para aparecer aos indivíduos como coisa simples e sem mistérios – tal como se dá na espetacularidade da mercadoria e de sua forma no fabuloso primeiro capítulo de Das Kapital) –, [então, quando a totalidade] aparece como unidade simples, como manifesta sem mistérios, e deixa-se ser apreendida sem grande esforço (imagina-se, ao menos), ela já engoliu por completo aquele não viu nada de ofensivo e bárbaro – tal como naqueles quadros de crianças, envoltos em lendas aberrantes, que virados de cabeça para baixo representam (dizem, pois nunca vi nada de mais – talvez por insensibilidade própria) a alta barbárie da morte pelo monstro. Se é assim, se a totalidade se esconde e se autoanula para se fazer valer como totalidade – em todas suas mediações – qual possibilidade de a vivência ser crítica antecipando-se à totalização do capital e todas suas mediações que coisificam o indivíduo – mesmo o que tem consciência disso? Qual possibilidade de a vivência ser produtora do diferente no mundo do sempre-igual? Só um esforço descomunal e terrível permitiria ao indivíduo perceber toda (auto)coisificação e dominação. Mas isto demandaria a própria superação de si, ou seja, anulando a ideia de mônada, de autossuficiência: seria a percepção teórico-prática das insuficiências e deficiências, e suas superações, que daria o tom da vivência. A vivência só seria, então, quando já não existisse mais, quando se tornasse experiência de formação, ainda que seja formação incompleta por conta das mediações que a impossibilitam de todo.
A anulação dos aspectos “negativos” (negativos em sentido não-dialético), faz afirmar um vazio: o que a vivência produziu. Vazio que, diferente de nada, é repleto de forma: vazio que é a confluência das mediações da totalidade, que é o ponto de inflexão da indústria de produção da subjetividade. Vazio que aparece ao indivíduo como completamente seu todo, como sua totalidade singular. A realidade que vê “criticamente” é reflexo de si e ele mesmo é produto alienado do capital. O que vê, e que não percebe (quase) nunca e cada vez menos, é a própria totalidade que nega sua existência (duplamente: a totalidade nega a existência dele, ao passo que ele nega que exista tal totalidade, como um cético sem ceticismo – na medida em que afirma com todas as letras sua autoverdade  nesse jogo de forças, não é preciso dizer de qual lado a corda arrebenta). Prescinde-se das mediações: quanto menos mediada é a visão da coisa, mais nítida sua “verdade” para o eu. As mediações ofuscam. Cabe retirá-las ou nem trazê-las ao jogo.  

Nau dos Loucos
(navegava pelo rio Reno, na Idade Média, recolhendo toda gama de “loucos”. Dava-se, também, reverência à “loucura”, certa divinização por não conseguir “compreendê-la”: poderia ser manifestação dos mistérios divinos)

Jogado à deriva em um mar sitiado, joguete de uma mão múltipla que domina invisível, o novo lumpemproletariado, agarrado à vivência e abdicando e esquecendo tudo aquilo que não lhe convém, afirma onde deveria negar e nega aquilo que deveria, ao menos, levar em conta. Sua contravenção ratifica a totalidade dada como se se manifestasse contra ela. O reconhecimento de si, que exige o outro e dele prescinde, ao mesmo tempo, é a anulação da individuação pela vivência imediata: é a mediação do sempre-igual que padece de má-consciência. Quanto mais individualizado o “vivente”, mais coisificado e igualado ao todo. Proscrevendo o trabalho do negativo na própria Coisa – as contradições que deveriam suscitar a superação do estado de coisas vigente ou, ao menos, a consciência sobre tal estado –, anula-se a crítica, afirma-se a Coisa tal como é: um imenso fetiche da produção (da indústria cultural) capitalista.
A afirmação de si com todas as forças (quais?), vazias e preenchidas de conteúdo alienado, é a negação mais ferrenha da possibilidade do próprio si. Quem, se não for por ingenuidade ou mau caratismo, festeja a “negritude” da mais nova dama inglesa? Prescrevem as mediações ao ponto de poder afirmar que as revoluções industriais realizaram a superação do capital pela natureza viva que, agora, se impõe soberana sobre a técnica: Stultifera Navis. Mais poderia a tal “negra” ser residente do Jardim Europa ou de Moema – ninguém daria conta. Todavia, vivas ao empoderamento, à sororidade e à identidade! Qual a medida, por outro lado, para pular as mediações, tal como a mágica do Barão de Münchhausen, a fim de afirmar (ratificar) o filtro sociocultural da indústria da perversão, da exclusão e da continuidade – o vestibular – simplesmente negando” (em aparência) a absorção completa da mercadoria pela indústria cultural? Vivas à sobrevivência no inferno! A falta de senso é o pôr completo do eu vazio (preenchido pela vivência) no objeto para ver apenas a si mesmo refletido nele: afirmação do eu e da barbárie são a mesma coisa.
O momento no qual se prescinde da divisão de classes, e se nega tal divisão, é o mesmo (momento) no qual a divisão mais se impõe e se totaliza como uma das mediações universais: racionais aqueles que aceitam a exclusão pela absorção fetichista da periferia (que anula, por ser fetichista, a própria ideia de periferia ao usá-la, ao mesmo tempo, como ponto de apoio para mais aprofundamento de sua própria existência sistêmica e totalizadora)? Críticos aqueles que simplesmente vociferam sem critério, sem eira nem beira, sem perceber o que está por trás? Empoderados aqueles que assumem a posição subalterna e glorificam um aspecto (vazio e ratificador; mediado e coisificado) como se fosse a grande vitória? Alguns se “esquecem” das mediações – de como a coisa chegou ali, qual processo que tem por trás dela – por má-fé: são alertados e não querem fazer a crítica de fato porque têm medo de suscitar contradição. Esquecem, igualmente, que suscitar contradição é elevar a contradição ao patamar digno do nome, é revelar a contradição da Coisa, não do indivíduo (trocando em miúdos: a contradição não é minha, é própria do sistema). Outros não se dão conta por ingenuidade. Destes, que o mar pelo qual navega a Nau dos Loucos tenha piedade – não terá, mas não custa anular uma mediação para ficar bonito e dar esperança, afinal, todo mundo faz isso.

Subsolo!


sábado, 5 de maio de 2018

Apontamentos #1



          De tudo que é efêmero, o mais palpável é o sentimento da morte. É o mais palpável e, contraditoriamente, o mais fugaz, esfumaçado. Todo prédio que cai leva consigo um pedaço da persistência. Não a persistência do concreto: a persistência do tabu. Nada fica, nada teima em permanecer e cumprir seu papel. De tudo que estava, nada havia que tenha permanecido, que não tivesse já o destino da fumaça. Estava, pois as coisas apenas estavam. Estavam, pois a coisas nunca mais se deram no presente. O luto, que deveria cumprir seu papel psíquico, persistir e alterar a configuração do todo pelo momento, é tabu: “tabu não é morrer; tabu é a morte”. Esta mesma que se esmaga, que se esvai na abstração do que valia mais: o higienismo e sua reprodução massiva na profusão sempre-igual dos milhares de discursos, ou a transferência da culpa, ela em sua disseminação vazia que só revela o que tem dentro dos indivíduos – o que tem dentro, não a interioridade. E o que se tem dentro passa de reprodução? Mas, reprodução de quem, de quê? Pouco importa. O luto não persiste, tampouco cumpre seu papel: a face humana da morte morreu antes dela mesma.
        Vários tiros ou o corpo arrastado em via pública – ou o corpo sumido por instância pública... Nada vale. E mesmo se valesse, valeria como mercadoria. O paradoxo está dado: valer ou não valer, that’s the question! E não se culpe o outro, bourgeois ou citoyen. A efemeridade é doença também do “crítico”. O anjo da história olharia para frente – duplamente atônito: o passado já não está mais atrás das costas. “Tabu não é morrer. Tabu é a morte!”

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          Estado de exceção? Quando? Onde? Quem não sabe definir, define. Só com uma mordaça se poderia definir exceção – ou sem ela, tanto faz. Quanto menos exceção, quanto mais naturalidade em tudo, mais exceção. O Estado de exceção não é poder não falar; ao contrário, é falar só o que se pode – e o que se pode nem sempre é identificável imediatamente. A “seriedade bovina” é mais realização da exceção que a mordaça.

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         Dia 05 de maio. Quem ainda lê Marx é um gênio – leitor gênio de gênio. E ser gênio não é para qualquer um. Tanto é que ele, há 150 anos, passava 10 horas se esfolando com os livros na biblioteca pública de Londres – menos aos domingos, quando passeava com as filhas, aquelas mesmas para quem lia toda noite, Shakespeare de preferência, antes de dormirem. O primeiro rascunho sério de O Capital, os Grundrisse, datam de 10 anos antes da primeira edição do volume 1 do dito cujo. Gênio! Gênio? Será? Fôlego, paciência, persistência, Trabalho – com T. Quem define o gênio nunca foi leitor seriamente. Quem se define gênio nunca se deu conta que o cosmo não é o próprio umbigo – ou o eu, que dá no mesmo.
         O sujeito mais difamado de, pelo menos, 150 anos para cá, teve e tem poucos leitores que o levaram a sério. Parvoíce und cretinice! Sim, é assim que se define. Pois crítico é quem lê, interpreta, sua em cima do texto e do pensamento. Quem difama – consequentemente sem ter lido nada além da capa, nem orelha! – não pode ser dito crítico. Gênio? Risos. Viva os 200 anos do primeiro crítico sério da banalidade sistematizada. Luto ou festejo? Pouco importa: dia 06 ninguém mais se lembrará de nada.

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      Um corpo que cai – só em Hitchcock! Reprodução à exaustão. Discursos efusivos. Os “sensíveis” fazem o mesmo jogo dos brutos: quem entra na ciranda tem de cirandar. Quem fez a ciranda? Só a abstração sabe. Efusivos, parvos, títeres. Quem entra na roda, roda. E como roda. O jogo não se supera com gol, mas com a superação do campo. Se um corpo cai, um espírito deveria se cindir. Mas o verbo no futuro do pretérito anula desde antes a ação. O corpo cai, se desfaz no concreto armado em fogo. O concreto? Só a abstração dominante prevalece. Alguns chamam pelo nome da mediação, obliquamente: especulação. Outros criam todo tipo de “teoria” – reprodução? – para justificar seus próprios eus. O que fica... bem, o que fica é o que antes já estava: pouco importa o que se deu. Mesmo os daqui – os “sensíveis” – justificam a barbárie – basta ver os perfis sorridentes que em luto permanecem sorridentes. “Morrer não é tabu. Tabu é a morte”. A forma mercadoria permanece igual e faz o meio de campo de tudo: ela produz, também, a sua forma de consumo – frise-se: ela produz – o resto é predicado quase banal. Tabu? É a morte!  

Subsolo!

terça-feira, 6 de fevereiro de 2018

Acerca de Sobre Feministas Negras e Solidariedade Racial: uma crítica


Acerca de Sobre Feministas Negras e Solidariedade Racial: uma crítica[1]


Todo texto – toda ideia – que aponta, no futuro do pretérito, algo que deve se realizar e que está bloqueado – deveria, portanto –, sem realizar a crítica imanente das condições objetivas dos porquês de tal bloqueio, sucumbe antes mesmo de se fazer valer. É sempre lá onde falta uma perspectiva de constituição da totalidade da sociedade que a culpa recai sobre indivíduos ou grupos isolados, como se eles, tanto uns quanto outros, não fossem também produto subjetivo de uma objetividade determinada.
É sempre um palavrório sem fundamento, que, no mais das vezes, não passa de reprodução daquelas formulações que todos os que se sentem oprimidos – pelo menos segundo este ponto de vista limitado e limitador – gostam, querem e, especialmente, precisam ouvir:

muitos ataques a feministas negras são feitos por homens negros. Algumas vezes eles reproduzem
esquemas mentais destinados a justificar a dominação masculina. Certas críticas estão baseadas na ideia de que a mulher negra ocupa um lugar natural dentro da estrutura familiar. Ela existe para cuidar do marido e da prole, posição que reduz a noção de pertencimento social à tradicional estrutura hierárquica típica das relações heterossexuais. 

As questões que faltam são as seguintes: de onde se tira isso? Por qual motivo isso acontece? Sem respostas a estas questões, fica parecendo que é um traço individual e subjetivo – uma doença moral – do indivíduo isoladamente, sem mais.

Esses mesmos indivíduos também reproduzem as falácias argumentativas destinadas a manter a dominação racial. Isso ocorre principalmente em função da defesa do individualismo como doutrina social, o que encara o racismo não como algo sistêmico, mas sim como um comportamento de algumas pessoas que destoam de um suposto ideal de tratamento igualitário que existiria entre nós. Iludidos com alguns privilégios de classe, essas pessoas pensam que conquistaram respeito e apreço de pessoas brancas. É claro que eles também fazem essas críticas gratuitas porque não gostam de ver mulheres negras tendo qualquer tipo de notoriedade social. Afinal, o falocentrismo está sempre presente nas mentes de homens negros e brancos.

Qual a função de usar jargões? Bem, no âmbito do embate de que “vale mais quem usa mais jargão, mais palavra designativa e pomposa”, o discurso que supostamente defenda uma minoria e que, para isso, use toda a gama de palavras com sentidos prefixados e impactantes, ganha. E ter de “ganhar”, por si só, já revela a profundidade do problema.

[A] solidariedade racial deve ser pensada como um tipo de identificação política: todas as pessoas negras compartilham experiências de discriminação que afetam o status material e o status cultural delas. A falta de respeito e apreço social por pessoas negras faz com que todos nós sempre estejamos em uma situação de vulnerabilidade, independentemente da nossa posição no sistema de classes. 

Todas as pessoas negras compartilham de ocorrências de discriminação. No entanto, o efeito que isso causa dependerá de diversos fatores, inclusive daqueles que não se podem apreender teoricamente (fatores individuais, psicológicos e etc.) e de outros que determinam os indivíduos tanto ou mais que um único fator isolado. A última frase é emblemática: “todos nós sempre estejamos em uma situação de vulnerabilidade, independentemente da nossa posição no sistema de classes.” De Capitães do mato a Obama, passando pelas diversas perseguições e ditaduras nos países negros, entram na conta? Uma determinação social – ser negro –, apesar de imprimir uma ligação intrínseca aos que dela participam, é tênue. Ela é uma dentre várias determinações. É uma e, dependendo do caso, não é, nem de longe, a mais importante – frise-se: ser a mais visível, identificável imediatamente, não confere status privilegiado a ela. A aparência esconde e revela, ao mesmo tempo, a dominação real. Não se trata de uma “essência” escondida por detrás de tal aparência. Antes, de uma totalidade que constitui, inclusive o indivíduo em questão, independente de sua negritude, branquitude ou seja o que for. Numa totalidade constituída em classes, até que ponto a questão das classes pode ser posta completamente de lado? Colocando-a assim, Holidays, Pittas, Obamas e toda gama de negros que exploram pessoas, inclusive os negros, direta ou indiretamente, deve ser posta como patologia? Como se explica os próprios “homens negros que rebaixam mulheres negras?” Como pessoas carentes de moralidade? Ora, mas não é esse o discurso, desde os tempos de colônia, para caçar e encarcerar pretos em massa? Não é o discurso de Datenas, Alckmins e Cia?
“Apenas um tipo de solidariedade racial que questiona esses mecanismos de opressão poderá permitir a criação de um sentimento de comunidade que contribua para o sucesso de nossa luta por emancipação.” Solidariedade, inclusive, com aqueles que nos oprimem?
Nunca fiz isto em texto, mas vamos ao caso: Eu, como homem negro, pobre, estereotipado e tudo que se tem direito, preciso ser solidário com o PM negro que mata igual um cachorro raivoso? Careço ser solidário, pois o problema dele é que ainda não se conscientizou (sic!) de sua falha moral e de seu “dever histórico”? Ora, a solidariedade dele para comigo será com a quadrada, duplamente fria, apontada para minha nuca. Ao contrário de tudo isso, a questão principal aqui é de formação: como o sujeito é formado na sociedade na qual estamos? Quais a fontes de produção do indivíduo, de sua consciência e inconsciente nesta forma social? Não é, nem de longe, um problema moral de solidariedade, nem de irmandade por um único fator. Não é e nem deve ser isso sem se levar em conta o tal indivíduo como um produto, como objeto resultante, determinado por uma totalidade constituída à sua revelia e, além do mais, totalidade que extrapola a associação simples por um único fator – reiterando: tão tênue.
De fato, o texto caminha pelo lado moral-individual. Sem problematizar nada, apela à “consciência” moral do “delinquente” que comete o crime de não ser “solidário” como um “dever cívico-negro”. Mais uma vez: se eu, como negro, critico e exponho meu contra-discurso, que vai para um lugar não-desejado pela crítica cool e descolada, o meu problema é de falta de caráter? O que diferencia, quem assim julga, de Datenas e etc.?

A solidariedade racial implica então uma etiqueta social específica entre pessoas negras. Primeiro, a demonstração de cordialidade é um dever moral que devemos ter uns com os outros. Ninguém é obrigado a conviver com pessoas negras apenas porque são negras, mas a demonstração de respeito por pessoas que são sistematicamente desprezadas do mesmo jeito que nós deve ser vista como uma exigência moral. É por isso que o ataque público a uma mulher negra porque ela expõe as formas como o sexismo afeta as mulheres da nossa comunidade serve para manter os padrões de exclusão social inalterados. Pensar que só homens negros podem falar pelos negros é algo ridículo e infantil.

O texto continua dizendo o que se deve fazer, tal como uma cartilha moral – o que, aliás, está em alta moda. Não se trata de pensar o mundo, mas de aceitá-lo como é, adaptar-se da melhor maneira possível, e corrigir-se o quanto antes – aliás (e este texto será recheado de “aliás”), não é isso que sofreu um negro emblemático: Lima Barreto? Era incorrigível – do ponto de vista da moralidade vigente –, por isso, foi trancafiado.
Adiante, o texto cai por si só: entra em contradição com o dito, interditando-se:

(...) pessoas negras que querem participar do debate público sobre racismo precisam ter conhecimento intelectual sobre o tema. Nossas experiências pessoais com o racismo são relevantes, mas elas não são os únicos parâmetros para defendermos posições sobre esse assunto. É preciso entender como o racismo está relacionado com a vida econômica, com a vida política, com a vida cultural, com as narrativas jurídicas, com a forma como as pessoas raciocinam. É preciso compreender que a população negra possui uma diversidade econômica, intelectual, sexual e religiosa. Isso significa que os diferentes segmentos experimentam o racismo de forma distinta.

Ora, e aquela identidade que todos os negros tinham por sofrer os mesmos tipos de discriminação? E qual o motivo da apelação para o status cultural hegemônico? Será que é preciso ser “cultivado”, formado “intelectualmente”, tal como manda a cartilha burguesa desde o século XVI – ou desde Goethe e dos Iluminismos francês e alemão para a formação cultural burguesa? As experiências pessoais, de fato, não são os únicos parâmetros (aliás, é o que estou defendendo desde o início: nem experiências pessoais, pois são podadas na raiz numa sociedade alienada e que coisifica os indivíduos, nem um único fator que está, inclusive, fora do alcance de controle do próprio indivíduo). O trecho acima continua: “É preciso entender como o racismo está relacionado com a vida econômica, com a vida política, com a vida cultural, com as narrativas jurídicas, com a forma como as pessoas raciocinam.” Ora, mas agora entraram na jogada os outros fatores que eram irrelevantes no início do texto? “Esse é o motivo pelo qual precisamos escutar o que as mulheres negras falam.” Mas, qual mulher negra? A preparada intelectualmente ou minha mãe, que sempre foi preta e passou por experiências? Em quem eu devo acreditar? Quem devo escutar? Aquela que dá carteiradas, ainda que (semi)formada intelectualmente, é menos confiável que minha mãe com sua experiência “iletrada”.
O que vem a seguir vai em destaque: “Reduzir o racismo a um problema individual é a mais antiga estratégia de dominação racial adotada no nosso país. É preciso reconhecer a dimensão sistêmica e institucional do racismo. Jamais iremos a lugar algum sem isso. Não foi exatamente isto que o texto fez, durante todo o tempo? Não reduziu o racismo a um problema tanto particular (isolado das outras tantas determinações sociais) quanto individual (como problema moral do homem negro que não sabe se comportar bem no debate público)? Qual a dimensão sistêmica e institucional da coisa? Qual sistema? Capitalismo? Sociedade de classes fundada na exploração do trabalho e, em nosso caso, na vigência dos grandes resquícios dos quase 400 anos de escravidão? Ficar jogando jargões sem teorizá-los, sem fundamentá-los, serve de pouco ou nada.
Se suas críticas não têm o propósito de corrigir possíveis compreensões inadequadas da realidade social que podem comprometer a busca pela justiça racial, fique calado. Compreender a realidade social passa, necessariamente, por estar de acordo com o que foi (???) exposto no texto? O que é justiça social? O fim do racismo? Mas o fim do racismo não leva, necessariamente, a uma sociedade outra, onde negros não precisariam se determinar por serem negros e os “brancos” não seriam O Mal simplesmente por serem brancos? – Tenho a impressão que vão me mandar calar...
Homem negro nem homem nenhum deveriam tratar mulher negra, nem quem quer que seja, como inferior! O problema, que existe, não é da ordem moral. Não é a moralidade fraca de indivíduos que faz com que isso ocorra – ninguém precisa ser Steve Biko, Malcolm X, João Cândido ou seja quem for! O problema é estrutural, de fato; é fruto de uma dominação abstrata, que não se mostra, e que, contudo, se instala por dentro nas pessoas, e nelas aparece de imediato, como se fosse problema delas exclusivamente, ou uma forma de absorção equivocada, por parte delas, das problemáticas raciais. A semiformação vigente dos indivíduos não é um problema de falta de informação sobre coisa alguma – antes, é até com sua ajuda que a questão se reforça. Numa sociedade formada à revelia da autonomia dos indivíduos, e que retroage sobre eles formando-os como objetos altamente determinados, não é a consciência moral ou os acordos prefixados – por quem? – que regem o “debate público” que irão salvar a esfera pública de discursos de ódio e a vida cotidiana do ódio vivo e efetivo. Na medida em que se faz isso – hastear a bandeira do moralismo burguês-ilustrado – as consequências são nefastas: em primeiro, aceitam-se as regras dominantes da sociedade vigente, as regras daqueles que dominam – ainda que não precisem abrir suas bocas para dizer uma palavra, pois os oprimidos se digladiam segundo as regras do jogo que, claro, não são suas regras criadas em sua autonomia; segundo, esquece-se que a estruturação sistemática (e sistêmica) do racismo remonta à formação da sociedade brasileira, em específico, e ao limiar da modernidade, em geral. É a conjugação, no caso brasileiro, entre base escravista, capitalismo e assistencialismo capitalista que nada resolve, somente tapa o problema para que depois ele retorne com força redobrada, e associação intrínseca entre capitalismo e racismo, de todos os matizes, no caso mundial.
O racismo, “revelado” nos e através dos “racistas”, não revela um indivíduo ao qual falta caráter, um indivíduo patológico. Revela, acima de tudo, uma sociedade doente, que faz sofrer imediatamente os oprimidos, em primeiro plano (as minorias sociais) e, mediatamente, toda sociedade. O indivíduo doente é produto de uma sociedade irracional e patológica; não é ele quem faz a sociedade ficar doente: sua ação somente expõe, elevada à potência, a fratura contraditória da totalidade social. Por outro lado, formação dos indivíduos – uma formação coisificada e alienada – pega todos em cheio: o racismo, ou qualquer tipo de opressão, manifesta-se inclusive através daqueles que estão na ponta de baixo. Os negros – ou qualquer grupo social excluído – não estão imunes a serem agentes racistas, tampouco estão mais aptos a resolver o problema (que não é só seu, ainda que na aparência objetiva seja).
Lutar com a gramática do acordo (o “debate público”, tal como Jürgen Habermas e consortes) a partir de uma gramática moral (tal como Axel Honneth e seus seguidores), não coloca em questão o principal: se o problema é estrutural, por qual motivo não se contesta, nem de longe, a estrutura na qual ele se assenta? De todos os jargões que jazem no texto, os que colocam em pauta a totalidade social capitalista não se apresentam à festa. Assumir que o problema do racismo é antissocial (independe da formação do todo da sociedade) – já que é um fragmento quase autônomo na sociedade – e, por isso, não colocar em questão que ele revela e sustém a totalidade (social), é assumir que o racismo não terá fim, e que os discursos bonitos, “contestatórios” e “representativos”, valem mais que a realização de uma emancipação radical e propriamente dita. O simulacro de emancipação – a elevação da “autoestima”, o “respeito” discursivo e prático, e etc. – não substitui a emancipação real, nem aqui, nem em qualquer lugar no qual a totalidade social do capital determina e domina.


Subsolo!




[1] Este texto é uma crítica ao texto Sobre Feministas Negras e Solidariedade Racial, de Adilson José Moreira, publicado no site do Justificando (Carta Capital), em 5 de fevereiro de 2018. Disponível em: http://justificando.cartacapital.com.br/2018/02/05/sobre-feministas-negras-e-solidariedade-racial-2/.

terça-feira, 12 de setembro de 2017

Descompasso

    
     Qual a questão mais candente de nossa época? Ser sujeito! Quando se é sujeito, no estilo vigente, tem-se a glutonia de um monstro. Sem cérebro, tal monstro devora tudo que brilha – o que brilha, pois, cego, só vê o que cintila, um Midas invertido. Abole-se a precisão da experiência. Experiência! Compra-se tudo, pois a experiência, pretérita, nada pode contra o todo. Cronos venceu Kairós. Engoliu-o. Aonde foi a espontaneidade? Quem em sã consciência ainda almeja qualquer tipo de envolvimento erótico com o mundo, é anacrônico. Subjetividade! – grita-se de lá. Qual? ... Quem, em sã consciência, ainda arriscaria a própria pele, correndo-se o risco de anacronismo, de morte total? ... A mercearia abstrata, tal como aquelas de interior, só que ampliada, tem tudo à mão. Nada deve ficar por desconhecido e enigmático. Tudo deve ter sentido prévio, posto, cristalizado. Cabe ao monstro – ou àquele que se diz sujeito – captar da maneira certa. Da maneira certa, pois há um sentido que transcende e extrapola as forças e a capacidade reflexiva do dito cujo. Aqui vigora o sempre-igual, o sempre-mesmo. Destoa? Paulada no cocuruto! Morte a tudo que descompassa, ao dissonante! Aqui, subjetividade significa o isto, prescrito pelo Grande Doutor. A interioridade é causa dos idiotas. Importa o que está por dentro. O que está por dentro, não a interioridade: somente aquilo que está por dentro desponta e brilha; é devorado; cega. Qual a questão mais de-cadente de nossa época? ...

Ouvindo:

Subsolo!

quarta-feira, 7 de junho de 2017

O Galo Gaulês e a Coruja de Minerva

        
          Hegel dizia que a Filosofia seria aquela que nasceria após o pôr do sol. A Coruja de Minerva que alça voo ao entardecer. Queria com isso dizer que a reflexão crítica somente se daria após os acontecimentos da história, depois que a poeira levantada tivesse baixado e tudo pudesse ser visto com clareza, tendo como norte seu fim. Isto daria certa segurança ao pensamento na medida em que reconduziria a reflexão dialética a montar o quebra-cabeça dos acontecimentos – o processamento da história – à luz da totalidade deles mesmos: é como se, grosso modo, o fim tivesse a chave-mestra que conferiria sentido ao todo, sob o ponto de vista desse todo acabado. Contudo, visto assim, isto é falso. Pouco importava o fim último para Hegel, mesmo que a totalidade somente pudesse ser completamente vislumbrada ao entardecer da história. Falso na medida em que, para ele,“a verdade está no processo”, não apenas em seu fim. Era o desenrolar do processo que se autojustificaria. É por isso que o desconhecimento do “esquema geral” hegeliano impede uma leitura compreensível de sua filosofia – ainda que conhecer tal esquema não garanta nitidez em todos os momentos. Todavia, o que importa aqui é que a filosofia não incidiria na realidade propondo um novo – ainda que Hegel tenha tentado isto, de alguma forma, em sua derradeira Filosofia do Direito; e, também, ainda que dê abertura para que se possam interpretar seus textos assim, à luz da crítica que propõe e não apenas analisa ou reage, a filosofia hegeliana identifica-se à Coruja de Minerva – embora crítica, “analisa” a realidade sem incidir praticamente sobre ela.
   Hoje, muitos dos críticos sociais – facebookeanos, semiacadêmicos e semipartidarizados – formam a “zaga do time do humanismo”. Sempre na retaguarda, aparecem após os acontecimentos para criticá-los – algumas vezes profundamente, outras apenas ferozes sem ferocidade e etc. São semihegelianos, às vezes sem saber: semi, pois prescindem da dialética e da perspectiva da totalidade. Sempre defendendo e, alguns, tentando armar o contra-ataque, ficam prostrados na crítica confortável – atrás da escrivaninha e seguros em suas identidades. Mas, como é sabido daqueles que já viram algum jogo de futebol, time que recua e se torna uma grande zaga, não faz jogo, não cria nem contra-ataca. Acaba quase sempre fazendo o jogo do outro. Como também se sabe, time recuado apanha e, se não perde, sai muito ferido e sem forças – e sem moral – para as disputas seguintes. São a Coruja de Minerva capenga, com uma das asas quebrada.
           Um espectro de esquerda ronda a internet – e também alhures. Este fantasma se deixou sucumbir pelas linhas direcionais do pragmatismo da pós-modernidade e do bloqueio (quase) geral e (quase) irrestrito do socialismo. Parece – e parece muito fortemente – que propor a luta irrestrita pelo socialismo – que não é somente a luta pela distribuição da riqueza, mas a produção socializada de outras formas de riqueza, de humanidade e de sociabilidade – é um desvairo. Cabe somente, a eles, criticar o que está dado, ficar na defensiva mais ou menos confortavelmente. Palavrear efusivamente cânticos de ordem que, sobretudo, apelam, quase que miseravelmente, pela integração, seja pela institucionalização do reconhecimento de uma tal identidade, de uma tal representatividade, seja por um espaço para ser aquilo que já são, mas agora com mais entusiasmo e autoestima – aqui, mesmo sem querer, tentam pronunciar Marx, mas só conseguem dizer Habermas, Honneth e congêneres – tal como Um Homem Célebre, de Machado de Assis, que tentava sempre compor uma obra erudita e ao piano saiam apenas polcas. Sucumbem à totalidade quando, no intuito do bom mocismo, esquartejam-na e acabam por defendê-la – ao passo que, na realidade, pensam mesmo estarem-na destruindo. A totalidade – a sociedade e a sociabilidade capitalista (até porque o capitalismo não é só um modo de produção econômica) – espreme a consciência do fantasma até que ele a defenda com o discurso contrário – contrário, pelo menos na aparência. E mesmo alguns dos “críticos” deste fantasma real ou se dizem à esquerda – isto é, esta esquerda – ou são os entronizados, acocorados acima das mazelas do mundo – algo nietzscheano, acima do bem e do mal – e estão aqui em nobre missão de defender uma certa “verdade” – abstrata e vazia por excelência.
         Este espectro é, além do mais, tal como um hegelianismo popularesco e empobrecido, especulativo. Entretanto um tipo novo de especulação: que se defende como o covarde que tem medo de si mesmo e da supressão de sua identidade tão arraigada nesta realidade, ainda que tenha aparência do sujeito mal encarado que não arrega para nada.
       Assim como a introdução de O Manifesto Comunista, é hora de mostrarmos nossa cara sem medo: é hora do Galo Gaulês! É cedo, antes do raiar do dia. Não é a teoria apartada e especulativa que deve dar o tom, a linha mestra, a ordem do dia. É a práxis, proposição teórica e prática sobre aquilo que queremos. O Galo ataca cedo, não espera o dia passar para cantá-lo em decassílabos camoniano-semiespeculativos. É preciso reinventar a realidade, mas não somente como literatura prescrita. Reinventar a realidade, criar horizontes possíveis – de aparência impossível para muitos. É necessário propor. Deve-se ser o time do ataque, que dá o tom e o ritmo do jogo, que bate forte e extrapola os limites temporais e espaciais do campo, da partida. É a Filosofia da Práxis, não a sobressaltada e manca especulação. É de manhã! É hora de o Galo cantar e decidir os rumos da sociabilidade, as transformações necessárias. Contra a especulação defensiva e capenga, quase totalmente integrada nas formas e práticas desta sociedade, o Galo Gaulês marxiano, utópico e concreto, firme e altivo, decidido e que dá a cara do dia, pois dá a cara ao dia. É hora de a esquerda ser Esquerda, não sucumbir à institucionalização de si, nem mesmo de suas palavras e utopias, de não ter medo da crítica dialética e da prática concreta, tampouco reduzir seu pensamento para a adequação seja ao que for... É hora de fazer a História e não apenas lê-la com lentes semi/pseudocríticas. 

Subsolo!

segunda-feira, 10 de abril de 2017

Fragmento #5: A Dialética do Umbigo

(ou a consagração da parvoíce)

         Nestes tempos imemoriais, olha-se para baixo como se se olhasse para o horizonte. O Umbigo é o norte. Todos querem tê-lo; e mais: todos querem ter o seu. E nada mais. O Umbigo revela, dialeticamente, as contradições da Coisa. Por um lado, a assunção do projeto ideal burguês de efetivação plena da subjetividade sem limites e condicionamentos. Por outro, a realidade burguesa do esmagamento e supressão do sujeito – ainda que, no plano disparatado do indivíduo-umbigo isto não ocorra. A Dialética do Umbigo é uma continuação secular da Dialética da Malandragem. A mônada ambulante que encarna nos donos de umbigos quer se ajeitar nesse mundo, quer seu quinhão, sem, no entanto, admitir tal requerimento. Quer seu quinhão mas o nega: o indivíduo quer ser sujeito – que, em conceito, traz em si alteridade – ao se igualar a todos. Sua radicalidade no protesto é seu perecimento mais profundo. A mônada subjetiva, todavia, somente se satisfaz quando outras, juntas e idênticas a ela, formam apenas uma, em coro uníssono – superam Leibniz! “O Umbigo é meu e faço o que quiser” – inclusive, sem saber, ficar sem ele. Mônadas, ou Umbigos, numa sociedade de classes não são revolucionárias. São, quando muito, o centro que se acha especial e que para nada serve – tal com um desforrado umbigo – e, sem precedentes, assumem todas as mazelas do movimento do corpo. Acham-se coração e cérebro: no fundo, e no fundo mesmo, só se entopem de sujeira difícil. O possuidor do umbigo, um experto, veste várias peles ao mesmo tempo em que se acha defendendo plenamente uma – a sua. Se antes havia aqueles que liam o mundo só que voltados ao umbigo, hoje há aqueles que leem o umbigo voltados para seu mundo. “Seu mundo”: sua suposta projeção que arregaça as mangas e luta com unhas e dentes para que consiga se igualar aos outros, independente das desigualdades, ainda que digam – e queiram até – o contrário! Se antes a desigualdade poderia criar a revolta de sua superação, agora causa a má-consciência daquele que quer ser “igual” mantendo-a. O “Grande Umbigo”, em sua face protofascista, independente de sua cor, é a superação da luta de classes: negam-se as classes por má-consciência e pelo trauma recalcado; quer-se manter as classes, pois o que seria do Umbigo se ele não tivesse algum inferior para quem aparecer e que, ainda mais, servisse de aporte de descarrego de sua culpa expressa, tanto latente quanto ultrainternalizada? Protofacista: assumir o “compromisso” da individualidade abstrata, do coletivo uníssono e estéril que lê o mundo somente como quer – projeta sua “umbiguidade” no mundo para conseguir retê-la, mais tarde, em “teoria”. Assumir, por fim, a fragmentação do “cada umbigo por si”; e mais ainda: “se meu umbigo for igual ao seu – e se consentir em se sujar como o meu – estarei ao teu lado”. Aliás, ai daquele que tiver umbigo de outro matiz e quiser meter o bedelho no umbigo alheio! Ai!
         A Dialética do Umbigo revela que a dominação total – ideológica – pôde se tornar real porquanto agora são os próprios dominados que se digladiam e assumem, concomitantemente, as pautas do “Grande Irmão” como suas. Revela, ainda mais, que o umbigo de cada um está acima do problema real: o umbigo é a solução de seu próprio problema, ou a criação deste, e vice-versa – seja lá o que isso possa significar! 



quarta-feira, 9 de novembro de 2016

Crise de Representação – ou – “Crítica” até o ponto em que se choca com o ego


Um dos pontos altos da atual crítica social é a evocação, consciente ou não, de uma falta de representatividade. Oportunidades não dadas são radicalmente (pelo menos radical em aparência) contestadas. Privilégios escancarados sofrem, igualmente, com comentários negativos. No entanto, há duas dicotomias escondidas: em primeiro, o simples fato de haver representação, concreta ou abstrata, satisfaz o crítico, ou pelo menos amaina sua ferocidade; em segundo, e talvez mais importante, privilégios estruturais que se mantêm, ocultos ou naturalizados – que é pior – servem de aporte para o crítico ao mesmo tempo em que suportam sua posição (des)privilegiada.
Ora, no primeiro caso pode-se pensar no ENEM: uma forma de “romper” com (ou melhor, diminuir) algumas das desigualdades sociais, ainda que seja passível de alta crítica. Para se safar da crítica radical, o próprio sistema, contudo, possui um método curioso: temas “humanizadores” em suas propostas de redação e algumas questões, ou mesmo apenas uma, provindas do mais alto escalão da intelectualidade de esquerda. Neste ano, o caso foi uma questão fundada num dos textos mais importantes – ou talvez mais falados – do século XX: A Indústria Cultural, de Theodor Wiesengrund Adorno e Max Horkheimer. Com a questão proposta, a prova do ENEM recebeu elogios até dos “mais ferrenhos” anticapitalistas. Os temas de redação, igualmente, do ano passado e deste, especialmente, dão férias aos dedos críticos que se esparramam pela suposta esfera pública atual – as redes sociais. Todavia, o que não se pensa do ENEM é sua forma, independente de seu conteúdo, e o que esta forma carrega em si.
Ainda que o ENEM supostamente confira algum tipo de ruptura das desigualdades de acesso ao ensino superior, ele acarreta na degradação da forma do conhecimento – e mesmo na igualação formal de um conhecimento coisificado, que só é conhecimento quando se filia àquilo que está sendo e pode ser, e à forma como é, pensado. Supostamente confere alguma ruptura, pois, por um lado, enriquece o lobby das universidades técnicas, que substituem o antigo ensino médio em “formação” de mão-de-obra barata – portanto, não forma, de modo algum, pensadores e pesquisadores de alto nível –, ao mesmo tempo em que mantém a divisão de classes: seletivamente – mas agora com uma sutileza a mais –, lega as grandes universidades (também elas apodrecidas – contudo, isto é outro assunto) para os de sempre, enquanto os novos atores (majoritariamente pobres) são deixados, mais uma vez, na posição subalterna – entretanto, agora com um toque de classe ascendente que nunca ascende. Por outro, mantém e ratifica a fórmula liberal com ares de “progressismo”. A fórmula é velha conhecida: isolam-se as desigualdades reais para elevar a igualdade formal à universalidade. Um “Exame Nacional do Ensino Médio” que mede os “conhecimentos” adquiridos (sempre supostamente) por estudantes oriundos do segundo ciclo do ensino básico, tanto particular quanto público, deve necessariamente abstrair das desigualdades (que engloba os regionalismos) entre os indivíduos para se efetivar – além de, é claro, “provar” que o ensino público faliu e que a saída para isso é a privatização do mundo! É a fórmula liberal: negam-se processos sociais de engendramento das ultradesigualdades sociais a fim de tratar todos como “iguais perante as 180 questões e uma redação dissertativa”. Mede-se, consequentemente, conhecimentos (mede-se técnica e mecanicamente, diga-se) adquiridos em 3 anos (mais uma vez: supostamente), ainda que de forma abstrata, em 8 horas de prova – diga-se: com a tensão intrínseca à categoria “prova”, com as expectativas de sucesso/fracasso colocados ali, com a suposta possibilidade de ascensão social e, com ela, melhoria de vida e etc.
O ideário liberal que se tornou segunda natureza dos indivíduos, mesmo aos críticos do liberalismo (e de sua forma atual: o neoliberalismo), embrenha-se nas entranhas do processo histórico e o esfacela. O que importa não é a falsidade do processo excludente de uma prova de vestibular – que, diga-se mais, isenta as universidades técnicas dos gastos com vestibular ao substituírem seus próprios processos pelo ENEM; de, também, conquistarem ganhos fixos e avantajados por isenção de impostos por concessão de bolsas de estudos (Prouni) como se fosse “esmola” aos menos favorecidos e etc. –, mas a falta de representatividade: ora! onde já se viu uma prova que não consegue nem mesmo ser plural? Que não considera os pensadores de esquerda e desconsidera o movimento intolerante no mundo (ano passado, tema da redação em torno da questão da mulher e do feminismo; este ano, em torno da intolerância religiosa)! Quando estes entram no jogo, parece que a tal prova foi pluralizada e, de certa maneira, democratizou-se o processo[1].
Numa sociedade na qual, grosso modo, a construção da subjetividade se dá como produção objetiva de sujeitos-empresa[2], que devem investir em si mesmos como mercadoria de valor de uso altamente rotativo e de grande desgaste (por isso a necessidade da constante atualização), torna-se difícil pensar que privilégios sejam privilégios e não produtos de mérito individual. A psique do indivíduo, despreparada para tanta tensão, tende a entrar em colapso diante de grandes frustrações num mundo que não aceita frustrações[3], por menores que sejam. A representação, por um lado e de algum modo, satisfaz o ego desse sujeito-empresa; por outro, a crítica deve satisfazer o ego, não esfacelá-lo – que seria inevitável em caso de uma revolução social[4].
Outro ponto importante do seu discurso [de Fernando Holiday] que constrói o seu fantástico mundo é a ideia da meritocracia. É muito bonito de acreditar que todas(os) têm iguais condições de disputar qualquer espaço na sociedade, sem levar em consideração as profundas desigualdades existentes. O interessante do discurso liberal é que ele desconsidera a história e a trajetória (...). Teoricamente, todas(os) são iguais, têm direitos iguais e isso basta.
No debate das cotas é possível exemplificar bem a fragilidade desse discurso liberal. O vestibular, uma prova de concurso, nada mais é do que um prova com um conjunto de regras e equações e aqueles que estiverem melhor treinados para aqueles padrões são os que têm o melhor desempenho. Nem de longe uma prova como essa mede conhecimento ou capacidade de aprendizagem. Ela apenas reflete os mais bem treinados para aquele padrão de prova. Para quem acredita na meritocracia, o fato de todas(os) concorrentes por uma vaga fazerem a mesma prova, com o mesmo tempo disponível, ou seja, regras bem estabelecidas, já garante uma igualdade de condições e aqueles que obtiverem o melhor resultado são os merecedores.
Porém, se a gente analisar esse mesmo processo seletivo, levando em consideração o contexto histórico e as distintas trajetórias, veremos que vestibulares e concursos são grande funis sociais. Vamos pegar dois exemplos de pessoas com trajetórias bem distintas. A primeira é uma jovem de classe média, que estuda em escola particular pela manhã, que a tarde faz cursinho preparatório para o vestibular, que tem acompanhamento psicológico, que os pais já possuem ensino superior e a estimulam de todas as formas para o aprendizado. A segunda é uma jovem, moradora da periferia, que estuda a noite, pois durante o dia precisa trabalhar para ajudar na renda doméstica, com muito esforço faz um cursinho popular aos sábados. Essa, se passar no vestibular, será a primeira da família a cursar o ensino superior.
Será que quando essas duas trajetórias se encontram para fazer a mesma prova, com as mesmas regras, elas estão em condições iguais? A política de cotas nada mais é do que uma ação que busca diminuir o abismo entre essas trajetórias e garantir oportunidades para aqueles que historicamente foram excluídos. [Grifo meu][5]
Duas coisas: primeiro, qualquer coisa que seja feita sem contestar a estrutura das relações sociais, tais como são produzidas e não somente como são reproduzidas, tende somente a “diminuir o abismo”, sem, no entanto, eliminar as desigualdades, nem mesmo criticá-las efetivamente; em segundo lugar, a meritocracia, tal como manda o ideário liberal conjugado ao “jeitinho” intrínseco ao caráter brasileiro, somente é “ruim” quando não atinge o indivíduo em questão[6]. Basta ver que, para este caso, as mesmas estruturas de relações que eram consideradas excludentes, podem ser, por um passe quase mágico, tidas como inclusivas ou como algum tipo de vitória e “diminuição dos abismos” sociais se forem protagonizadas por “gente da nossa gente”, isto é, caso haja algum tipo de representação. Um passe de mágica, um misterioso salto “qualitativo”, que invejaria qualquer Barão de Münchhausen.
O fato dentro do fato – o fato de haver representação dentro do fato de uma prova que nega processos sociais – amaina a consciência crítica, com sua abstração conciliadora e universalista, que não esquece dos “sempre esquecidos”, e, por fim, consegue adeptos e defensores até entre aqueles que dizem “pensar o processo imanentemente”. Quando a aparência de oportunidades iguais camufla a desigualdade profunda e impõe um simulacro de igualdade, ou contesta, ainda que superficialmente, algumas desigualdades, tudo ok! Basta não apresentar o monstro que sabemos existir e que, contudo, negamos veementemente ao mesmo tempo em que vivemos por ele[7]. As desigualdades permanecem e se ampliam, por fim, e a representatividade se esgota com o bater do sino de “fim de prova”.
Por outro lado, os privilégios escancarados – como esse monstro que alguém ousou emergir – sofrem críticas profundas. Não é o caso de eliminar os privilégios, mas de não os deixar tão aparentes. Como modus vivendi do bom caráter brasileiro, é preciso ser radical na crítica ao privilégio para mantê-lo na realidade efetiva tal e qual, mesmo que inconscientemente e mesmo com uma crítica de boa-fé[8]. Privilégios ocultados na realidade ou aceitos naturalmente, como se não fossem privilégios mas o jeito que a coisa é, são mantidos e estruturam as relações. Não se trata, para voltar ao ENEM, de criar uma prova a mais, supostamente mais democrática; trata-se de eliminar, ou ao menos fazer a crítica necessária, qualquer elemento que reduza os processos desiguais a fatos eivados de igualdade formal.
A crítica só “tem razão” de ser na medida em que há uma crise de representação – e não é isso, exatamente, que aconteceu com o Rap, por exemplo, na virada para o novo século quando as condições miseráveis escancaradas que davam base para as letras e para a militância deixaram de ser escancaradas, ainda que não tenham sumido mas se aprimorado e sutilizado? E não é o que acontece, hoje, com a individualidade pequeno-burguesa-crítica que sofre quando seu ego não é minimamente satisfeito? A crítica ferrenha esbarra, exatamente, na manutenção da estase do ego. Ela perde sua razão de ser – até porque, visto o caráter do ego brasileiro, é mais afetivo-privada que racional-pública – onde pede mudança de tudo, transformação radical da realidade, menos de seu ego. Parece que tudo deve mudar, menos o espaço – psíquico, geográfico, sociocultural –, ultra-arraigado e “zona de segurança e conforto”, do indivíduo que exige mudanças.
Não é o caso, para o ego estático que é barreira para as mudanças bem mais que a suposta “direita fascista”, de, por exemplo, garantir proporcionalmente as vagas das universidades públicas para aqueles que não possuem capacidade econômica de pagar um curso particular, provindos da escola pública e comprovadamente pobres. O caso se dá em garantir, gradualmente – gradualmente, aliás, já se foram algumas gerações que morreram esperando a “evolução gradual” e a redução “gradual das desigualdades” –, o acesso ao ensino superior, e que tal acesso mantenha as distâncias necessárias entre as classes: você, pobre, preto, da periferia, que vá para aquelas “universidades” que não possuem projetos de pesquisa nem de extensão, tampouco produza “parte de uma elite pensante” (e a própria ideia de “elite” deveria ser contestada radicalmente), enquanto nós, abastados de Moema, Perdizes e afins, continuamos com os privilégios que já eram de nossos pais e avós, portanto, naturais. Mesmo o mais marxista, o mais radical, reproduz privilégios em seu microcosmo: filas afetivas para ingresso na pós-graduação, indicações diversas, requisição das compensações sociais também para si e etc.
No fundo, ser representado é diferente de ser alguma coisa, de estar lá, concretamente. O Ecossocialismo foi representado com as propostas de mobilidade urbana em São Paulo (cidade) na gestão Haddad. Mas só para “inglês ver”. Menos emissão de poluentes; pessoas mais dispostas por aliar exercício físico, lazer e locomoção... Todavia, a estrutura perversa do capital, que faz suas maiores vítimas na periferia da periferia do capitalismo, continua a todo vapor, a ferro e fogo, sem descanso, num “moinho de moer gente” – como uma das famosas interpretações do Brasil disse sobre nosso processo histórico. O Ecossocialismo, então, nem entrou na pauta – ainda que uma parte dos críticos do capital glorifiquem alguns tipos de pedaladas.
É fácil dizer que o ENEM dá oportunidades àqueles historicamente prejudicados e excluídos. O difícil é saber onde estão as tais oportunidades num sistema que opera, também pelos privilégios egóicos, pela anulação de quaisquer oportunidades ao mesmo tempo com elas pintadas na parede do cenário como horizonte (im)possível – tal como as nuvens e o sol em O Show de Truman.
As questões que ficam são: o ENEM não é um moinho ultrassutil de moer gente? Ou será que há, por meio dele, alguma possibilidade efetiva, social, de mudança estrutural que não venha com o adjetivo “gradualmente” acoplado? Além do mais, não seria o ENEM uma reprodução do Jeitão brasileiro elaborado historicamente pelas elites, copiado, em versão mais “popular” e “menos criteriosa” (mais “de qualquer jeito”, portanto), para servir de pretexto e “compensação” simbólica para as classes subalternas? Não seria uma cópia popularesca do malfadado vestibular, com o mesmo grau de exclusão, mas com um ar menos “aristocrático”?
O que parece que pega é que a regra, a natureza do sistema, é tanto aceita como natureza mesma, quanto sua forma é preenchida com conteúdos diversos. Isto tanto para acalmar ânimos e manter as coisas como estão, quanto para reproduzir os privilégios entre os privilegiados sem que, contudo, isto fique aparente[9].


[1] E mesmo neste caso, uma parte da sociedade “critica” por conter temas ligados aos “vagabundos” e “esquerdopatas”, ou mesmo por tratar dos direitos humanos que “só defendem bandidos” (mas isto é crítica da esquizofrenia social, não há como tratar aqui).

[2] DARDOT, P.; LAVAL, C. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. Trad. Mariana Echalar. São Paulo: Boitempo, 2016.

[3] KEHL, M. R. O tempo e o cão: a atualidade das depressões. São Paulo: Boitempo, 2009.

[4] O Conceito de revolução, tão desgastado e desacreditado, deve ser lido, aqui, como transformação radical da realidade; isto é, como transformação profunda do modo de produção da sociabilidade e dos indivíduos, não tendo a ver, somente, com a ideia de “guerra de guerrilhas” ou de “revolução proletária” como teorizada no século XX.
Além do mais, é preciso considerar o socialismo como mais que a tomada das mesmas estruturas de poder por parte da classe dos que vivem do trabalho. Aliás, como diferente disso. Não é a contestação dos privilégios burgueses por serem somente da burguesia. É a superação do modo burguês de relações sociais, de relações de produção social da realidade e dos indivíduos em sua totalidade. Foi isso que Marx, para desespero do marxismo tradicional, pensou: transformação radical daquilo que dá bases sólidas para os processos capitalistas, sendo a base mesma um processo especificamente capitalista. Portanto, pensou a superação do modo de produção da realidade, fundado no trabalho abstrato e na forma-trabalho que dá vida à toda objetividade social e à toda subjetividade.

[5] JUNINHO Jr. A meritocracia e o fantástico mundo de Holiday. Disponível em: http://www.almapreta.com/realidade/meritocracia-fantastico-mundo-holiday


[6] Aqui é importante pensar que o nosso jeitinho é produto objetivo de nossa história (do Brasil) de formação da subjetividade. E mais: é preciso pensar que é uma construção dominante legada às classes dominadas que a reproduzem em menor escala. Veja: OLIVEIRA, F. de. Jeitinho e Jeitão: uma tentativa de interpretação do caráter brasileiro. Disponível em: https://blogdaboitempo.com.br/2012/11/12/jeitinho-e-jeitao-uma-tentativa-de-interpretacao-do-carater-brasileiro/

[7] São interessantes os filmes de Sergio Bianchi, especialmente, no referido caso, o seu Cronicamente Inviável (2000), no qual o crítico ferrenho “alimenta” o sistema que critica.

[8] Novamente, Cronicamente Inviável é infalível neste quesito. Além deste, o filme A Causa Secreta (1994), também de Sergio Bianchi, além do conto homônimo de Machado de Assis (no qual o filme é baseado), são exemplares disso.  

[9] Adendo final: por conta da eleição de Donald Trump nos EUA, certa euforia histérica tomou conta dos progressistas. Importa saber que, pelo recorte que propus, a crise de representação toma conta do cenário. O alarmante desespero quanto à eleição de Trump faz parecer, implicitamente, que Hilary Clinton é progressista, seja melhor e mais bem preparada para manusear a máquina. Os iraquianos e palestinos, e migrantes oriundos do Oriente Médio e da América Latina que o digam! Por falta de reflexão e vocabulário chama-se Trump de “fascista”, enquanto a dominação econômica e política feita pelos EUA durante os anos Obama foram ofuscadas por seu carisma e sua cara de bom moço. Não que tenha sido como Trump promete que seja a partir de agora. Mas não estava longe disso. Tinha-se, nessa corrida eleitoral, um projeto radical xenófobo e etc., e um projeto imperialista mascarado de “natureza natural da coisa” (já que, uns mais outros menos, aceitamos o imperialismo contanto que ele se mantenha como está; isto é, tornamo-nos conversadores da desgraça por conta de seu sorriso condescendente). Trump não representa, com sua figura, minoria alguma. Clinton representa a continuidade de uma representatividade negra e, por si mesma, representa mulheres e a continuidade de uma política progressista (mais uma vez, os árabes que o digam!). Crise de representação é pior que crise real. Escamoteia-se a crise real por conta de uma representatividade abstrata. No entanto, a crise real não é deflagrada com a falta de representatividade. E isto é interessante. Trump talvez seja o desfecho real de uma sequência histórica, não uma ruptura radical. Clinton era além de real desfecho, sequência natural na ordem das coisas do Império.

Subsolo!